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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

DE MITHYÁ PARA SATYA: VIAJANDO NO DISCERNIMENTO


DE MITHYÁ PARA SATYA: VIAJANDO NO DISCERNIMENTO


O nosso dia-a-dia é constantemente permeado por formas de conhecimento ilusórias, concepções que não assentam sobre um fim comum ou entendimento universalmente aceite. Estas concepções chegam a estar tão presentes nas nossas vidas que condicionam toda a nossa acção ao longo do dia. Tomemos como exemplo o “nascer do Sol”: o Sol “nasce” às 05h30m – 06h da manhã; a partir desse momento concebemos o momento ideal para o desenvolver de cada tarefa; às 08h tomamos o pequeno-almoço; às 09h as pessoas chegam aos seus trabalhos; às 13h chega a hora do almoço; voltamos para trabalhar às 15h; saímos do trabalho às 19h, e dirigimo-nos às próximas tarefas enquanto o Sol se “põe”, compras, cozinhar o jantar, sair com os amigos, e mais cedo ou mais tarde, chega a derradeira hora de ir dormir. Agora esclareçam-me uma coisa: que história é essa de que o Sol nasce todos os dias? Sendo uma estrela, o Sol teve com certeza um nascimento, mas se ele morresse e nascesse todos os dias, que seria da existência da Humanidade e de todo o sistema solar? Então e o Sol põe-se? Põe-se onde? Tanto quanto o conhecimento do espaço sideral nos permitiu até agora, o Sol é o uníco elemento deste sistema solar que não se movimenta (senão em torno de si mesmo), enquanto todos os outros astros orbitam em seu redor, e se assim é, então onde é que ele se põe? Por acaso muda de galáxia? A própria noção do tempo, o nosso horário solar organizou-se de acordo com esta concepção errónea de que o Sol nasce e se põe, e afinal, tudo não passa do movimento de rotação do planeta Terra em torno de si mesmo, e do movimento de translacção que este planeta tal como todos os outros neste sistema solar, efectua em redor do Sol. Estas verdades relativas, aparentemente inofensivas, acabam por influenciar toda a nossa forma de estar perante a vida e perante o entendimento que fazemos da nossa natureza e do universo. A esta forma de conhecimento ilusório damos o nome de mithyá.

O conceito mithyá tem 2 significados, sendo um destes “falso” ou “ausente de verdade”, e o outro indica “algo que depende de um outro algo para existir”. No que concerne às concepções erróneas que o ser humano desenvolve acerca da sua própria natureza, mithyá nasce do processo de identificação da pessoa com aquilo que ela não é, resultado da sua ignorância existencial.

O indivíduo identifica-se com as demais camadas ou atributos que o constituem como ser experiencial: ele identifica-se com o corpo físico e com as mudanças que se manifestam neste (Eu sou alto / sou baixo / sou magro / sou gordo / estou doente / dói-me o braço / dói-me a barriga). O corpo físico, ou annamayakosha, depende do alimento para existir, ele é de uma forma geral, uma modificação da própria comida. Assim, o annamaya não pode encerrar em si a essência que é o Ser (átmá), mas antes um revestimento deste Ser. Se o átmá é nityam, eterno sem princípio nem fim, o corpo não pode ser o átmá porque o corpo não existe antes do seu nascimento nem depois da sua morte.

A pessoa identifica-se também com o corpo prânico, ou pránamayakosha (Eu sou forte / sou fraco / tenho fome / estou cansado / sou o ar que respiro). O prána, energia vital, torna o corpo físico vivo, está presente em cada célula, e é pela sua presença que o corpo empreende em toda e qualquer actividade física ou mental. O prána também não pode ser o átmá porque o prána é uma modificação do ar, entrando e saindo do corpo, vem e vai, e ao mesmo tempo, está sempre dependente da quantidade disponível de oxigénio.

O complexo mental, ou manomayakosha, é também objecto de identificação por parte do homem. Pelo manomaya se desenvolve a noção do “Eu”, “meu”, ou “mim”. Esta camada permeia a camada prânica, e é constituída pelos orgãos dos sentidos (jñanendrya) e pela mente (manas). Esta camada representa as modificações na mente, está sujeita a mudança a todo o tempo, ela é a causa para a divisão (vikalpa) aparente do indivíduo (jívátmá) com o Ser absoluto (paramátma). Ao identificar-se com o corpo, a mente superimpõe os atributos do corpo sobre o átmá. Aqui tem origem a dualidade existencial em termos de nomes e formas. Quanto a isto, refere a Bhagavad-Gita: “Indivisível, parece dividir-se em formas e seres distintos. Sustentáculo de todas as criaturas, é o que as engedra e devora.” (XIII: 16).

Tal como a mente se compõe de pensamentos, ou vrrtis, as emoções também são integralmente vrttis. Na mente também se encontra o vijñanamayakosha, a camada onde ocorrem as actividades intelectuais e intuitivas, e esta é também composta por vrttis. Os vrttis estão em constante movimento, e apesar do vijñanamaya ser responsável pela cognição, apesar de ser aquele que se entende como o agente ou actor (kartá) e o manomaya ser apenas um instrumento (karana), os seus papéis invertem-se devido à velocidade vertiginosa das vrttis na mente e na emoção. E por esta razão a pessoa entende-se como sendo o pensamento ou a emoção (eu sou isto, aquilo é uma árvore, esta blusa é minha, eu estou triste, eu estou contente).

O manomaya (atributo mental) tem na sua essência o sofrimento, ou duhkha, como reflexo da dualidade presente no ego (ahamkára), assim é de natureza sofredora, ou duhkha svarúpa (eu estou triste, eu estou frustrado, eu sou incompleto). A mente também passa por um processo de identificação com a felicidade (sukham), mas de facto, esta manifestação de felicidade tem origem no ánandamayakosha, camada da felicidade suprema (eu estou feliz, estou contente, estou satisfeito). Sendo passível de observação, o manomaya também não poder ser o paramátmá porque todo o pensamento tem um princípio e um fim, e está sujeito a mudança, e assim torna-se um objecto de percepção (drshya). O Ser é aquele que percebe (drashta), o que observa, e não o objecto percebido.

As experiências de sukha e duhkha pertencem ao vijñanamaya. Se este atributo se vê como o actor (kartá) das experiências, então ele é com certeza aquele que disfruta (bhokta) também dos frutos da sua acção, apesar das experiências de sukha pertencerem ao ánandamaya.

O ánandamaya é constituído por vrttis “especiais” de origem tamásica, contemplativas e inertes, mas com predominância sátvica, iluminada e inteligente. No entanto, este kosha actua como um reflexo de ánanda, uma característica natural ao átmá exclusivamente porque o Ser é o único que é sem limites, total e pleno, este é o significando de ánanda. “Aquele cujo coração não se atém às impressões exteriores descobre em si mesmo a felicidade. Em união com Brahman, através do Yoga, desfruta da perpétua plenitude” (Bhagavad – Gita, V.21).

Todos os koshas que revestem o átmá não são outra coisa que não manifestações do átmá, mas o átmá não é nenhum destes. Todos estes atributos são superimpostos ao Ser. Estas noções são universais porque a ignorância da verdadeira natureza do Ser (satcitánanda svarúpa) é também universal. Esta associação ilusória do Ser aos demais koshas dá-se porque átmá “empresta” a sua existência e consciência a estes atributos, mas esta associação não pode ser real porque átmá é asanga, puro a todos os níveis. Quem experiencia as acções e os frutos desta são os koshas, estes são os agentes (kartá) e quem desfruta dos resultados (bhokta). Por isso mesmo, átmá é satya, a realidade, e as demais manifestações que este assumiu no universo são mithyá quando entendidas como a derradeira realidade. Átmá é nityam, eterno, sem princípio nem fim e presente em tudo o que existe, no entanto, tudo o que se manifesta de Si na natureza é efémero, e não pode desta forma encerrar nas manifestações a essência que é o Ser.

Mantendo uma atitude inquisitiva e equanime perante o que é experienciado percebemos o conhecimento de que o átmá é o único que não pode ser negado (sakshi) pois Ele é satcitánanda svarúpa, Ele é a realidade e a consciência, é o conhecimento, e a plenitude sem limites. Então, se eu existo, e tenho conhecimento de que existo, eu existo assim sem as limitações suscitadas pela ignorância e removidas por este conhecimento. O corpo não é o átmá, o prána não é o átmá, a mente não é o átmá, as emoções também não O são. Este é o discernimento que se obtém do conhecimento na natureza do Ser, como tal, a minha própria natureza é verdadeiramente sakshi, eu sou a consciência testemunha na forma de conhecimento (bodha), só isso permanece invariável.

Se o átmá é satya, verdadeiro, e deste tudo se manifesta, então devemos compreender que mithyá depende deste também. O reconhecimento do que é falso só pode ser atingido se conhecermos o que é verdadeiro. Mithyá é uma forma de conhecimento que não revela na sua essência a totalidade do átmá, e estando esta característica ausente, é então falso afirmar que os koshas são o átmá, esta crença é mithyá. A escuridão não existe, existe antes a ausência da luz; o frio não existe, existe sim a ausência do calor. Não pode haver nada onde nada havia. Toda a criação vem do Ser. Mithyá não pode ser considerada independente, ela cumpre uma função prática mas é ilusória quanto à compreensão da natureza do Ser. Todos os koshas dependem da auto-efulgência do Ser, qualquer objecto que quando observado comprova a sua dependência de outro objecto, isso é mithyá.

Para tentarmos compreender estas questões de uma maneira que nos seja familiar, convido-vos a reportarem este conhecimento para a vossa prática de yoga. Passarei então a exemplicar algumas situações simples e recorrentes na sala de prática:
é muito frequente identificarmo-nos com o corpo físico (annamaya) na nossa prática de yoga. A atracção pela estética do ásana (postura física), o culto do físico, ou a busca de um estado de saúde física e flexibilidade, que é manifestada por alguns praticantes, não pode ser entendido como o objectivo último a que se propõe a prática yoguica. Sendo o corpo físico dependente de alimento e sujeito a mudanças, identificarmo-nos com os resultados que são fruto da prática é mithyá;

outro processo que acontece com frequência é a identificação com o prána (energia vital). Na prática de kundalini yoga o praticante pode vir a identificar-se com a energia desperta no kanda (base da coluna) e que agora flui pelo sushumna nadi (canal subtil central que flui pela coluna vertebral), alimentando todo o corpo com uma experiência fisicamente extática. Na prática de pránáyáma (técnicas respiratórias) igualmente, alguns praticantes identificam-se com o aumento do fluxo de prána, ou com o calor que se gera pelo corpo. Isto é também mithyá;

Quando chegamos demasiado mentais na prática, com o ego conduzindo a nossa atitude, procurando reproduzir aquelas técnicas que nos enaltecem o ego, aquele ásana mais elaborado, mesmo que nesse dia o corpo não esteja disponível para tal experiência, ou tentar reproduzir o entendimento a que cheguei durante a última meditação e debatemo-nos om o brilho do intelecto sendo ofuscado pelo desejo do ego. O apego ao sucesso, o desejo de repetição de experiências, a frustração que ocorre quando os objectivos estabelecidos para a prática não são cumpridos, a identificação com estes resultados por parte do praticante é mithyá;

quando o praticante se identifica com o fruto da sua acção na prática de yoga, esse conhecimento é mithyá. O acto de testemunhar a prática não deve estar sujeito a apego ou aversão. Chegam a haver aqueles praticantes que ficam apegados à própria ideia do desapego ou à renúncia da vida no plano da natureza manifestada. Queremos repetir aquelas técnicas que desenvolvemos prazerosamente e evitar as outras que temos maior dificuldade, que exigem maior esforço de nós, que tornam a mente mais activa e instável. Isto é fruto da identificação com este kosha (vijñanamaya). “O Yogi que tem comando sobre a mente e, recolhido em si mesmo, pratica o Yoga, é como uma chama luminosa que, ao abrigo do vento, não sofre nenhuma oscilação.” (B. G., VI: 19);

a prática de pránáyáma desperta por vezes no praticante um estado de euforia. A meditação (dhyána) pode resultar numa experiência ou sensação de paz, entendimento, equilibrio emocional, ou felicidade. O relaxamento obtido no yoga nidrá (relaxamento profundo, o sono do Yoga) traz uma enorme sensação de satisfação ao praticante. Ao abordar a prática com o fim último de realizar estes efeitos pelas técnicas é fruto da ilusão de se acreditar que o ánandamaya enaltecido pela prática é o próprio átmá, e isso é mithyá. “Os yogis executam seus actos exclusivamente com o corpo, pensamento, intelecto e mesmo com os simples sentidos, sem abrigar identificação co quaisquer desejos, a fim de purificar o coração.” (B.G., V:11).

Como podemos perceber através destas citações da Bhagavad-Gita acima apresentadas, existe uma atitude yogica a cultivar na nossa prática,uma atitude reflexiva (niddidhyásana), uma atitude de negação da identificação com o objectificável, e de identificação com aquele que observa, o átmá. Essa atitude propõe-se ser desapegada (vairagya) da técnica ou dos resultados advindos desta, devemos para tal dedicar-nos à prática de Íshvara pranidhana, oferecendo o fruto da nossa acção à consciência que tudo testemunha. “Quem age sem o menor apego, dedicando suas acções a Brahman, não sofre com o erro, da mesma forma que a água não adere à folha do lótus.” (B.G., V10). Abordar a prática com viveka (discernimento) leva-nos à aceitação desta entendendo a plenitude em qualquer manifestação observada.

Se o praticante mantém o foco no conhecimento do átmá, ele compreende que o objectivo último da prática do yoga é exclusivamente moksha, é romper com os condicionamentos que resultam da identificação com o que é observável e sujeito a mudança, é aceitar a sua liberdade com naturalidade porque entende a plenitude em qualquer experiência. Sabemos que o foco é por demais importante para viver na experiência de moksha, mas este vem e vai, sempre em viagem, e assim nos deparamos nesta constante viagem de mithyá para satya, e vice-versa. Várias são as direcções que se apresentam ao yogi, muitos são aqueles que não chegam à meta a que se propõem, fica o convite então para que sigamos o caminho do meio com equanimidade (upekshanam), apanhamos boleia do discernimento, e que assim possamos perceber que o mais importante desta viagem não está em chegar ao fim último, ou até, regressar à casa de partida, mas sim desfrutar de uma boa viagem. Namasté!